INTRODUÇÃO
O barão
Georg Heinrich Von Langsdorff chegou ao Rio de Janeiro em 1813, depois de ter
sido nomeado cônsul geral da Rússia no Brasil pelo Czar Alexandre I. Era
naturalista e cientista-viajante, formado em Medicina pela Universidade de
Göttingen.
Em setembro
de 1816 adquiriu na região da mata Atlântica a fazenda Mandioca que transformou
em centro cultural e científico, hospedando cientistas estrangeiros.
Em 1821
apresentou projeto a respeito de expedição ao interior do Brasil que logo
recebeu aprovação e apoio financeiro do Czar. Preocupado com o registro científico
e com a fidelidade das informações que seriam obtidas durante a viagem, selecionou
um grupo de cientistas com formação em zoologia, botânica, astronomia e cartografia,
além de artista pictórico. Por este motivo, contratou: Edouard Ménétriès, naturalista francês; Johann Moritz Rugendas,
pintor alemão; Ludwig Riedel, botânico; Nester G. Rubtsov, astrônomo russo;
Georg Wilhelm Freyreiss, caçador e naturalista e Christian Friedrich Hasse,
zoólogo.
Entre
setembro e dezembro de 1822 os viajantes percorreram algumas regiões do Estado
do Rio de Janeiro e, em seguida, até 1824, fizeram pequenas excursões pelos
arredores da fazenda Mandioca. Em maio de 1824 se dirigiram ao Estado de Minas
Gerais visitando Ouro Preto, Sabará, São João Del Rei, Congonhas e outras cidades
do interior mineiro.
Para a
segunda etapa da expedição, depois da saída de Rugendas, Langsdorff contratou dois
artistas franceses: Aimé - Adrien Taunay e Antoine Hercule Romuald Florence. E,
desta vez, optando pela via fluvial seguiria o itinerário das monções que
partiam de Porto Feliz, conforme sugestão do botânico austríaco Karl Engler, pois os territórios desse trajeto
eram desconhecidos pelos naturalistas. Ao se decidir pelo caminho fluvial o plano
era seguir até a capital de Mato Grosso através dos rios Tietê, Paraná, Pardo, Camapuã,
Coxim, Taquari, Paraguai, São Lourenço e Cuiabá. E, mais tarde, até Belém do
Pará.
A partida
ocorreu na tarde de 22 de Junho de 1826, com trinta e oito pessoas (BECHER,
1990, p. 76) incluindo remadores, caçadores, escravos e guias, em oito
embarcações. O zoólogo Hasse preferindo ficar em Porto Feliz, não embarcou. Era
a primeira vez que cientistas estrangeiros realizavam tal percurso e, em 30 de
Janeiro de 1827, chegaram a Cuiabá onde permaneceram por cerca de dez meses, percorrendo
os arredores e cidades próximas.
Em outubro
de 1827 Langsdorff dividiu a expedição em dois grupos. O primeiro grupo com Riedel e Taunay viajaria
para o oeste através dos rios Guaporé, Mamoré e Madeira. O segundo grupo com
Langsdorff, Rubtsov e Florence seguiria para a Vila de Diamantino e pelos rios:
Preto, Arinos, Juruena, Tapajós e Amazonas. O reencontro desses dois grupos
dar-se-ia no Porto da Barra do Rio Negro, hoje Manaus; no entanto, alguns
imprevistos impediram que isto ocorresse.
No dia 12 de dezembro de 1827 o grupo
chefiado por Langsdorff chegou à Vila de Diamantino onde permaneceu durante quase
três meses. No dia 14 de fevereiro chegou carta de Riedel anunciando a morte de
Taunay, por afogamento, no Guaporé. No dia 06 de março vários membros da
expedição apresentavam acessos de febre intermitente.
No dia 10
de março o grupo seguiu para o porto do rio Preto acampando numa de suas
margens onde permaneceu cerca de vinte dias. Durante este período, o Cônsul e
outros membros do grupo foram acometidos por acessos febris com as
características da febre intermitente que grassava em Diamantino.
Em maio de
1828 quando estavam acampados na margem esquerda do rio Juruena, Florence, presenciando
o agravamento da condição mental de Langsdorff, anotou em seu diário que ele sofria
perda da memória das coisas recentes e
completo transtorno de ideias. Por este motivo, a expedição foi
interrompida. Os viajantes chegaram a Belém no dia 16 de setembro de 1828 e no
dia 26 de março de 1829 embarcaram no brigue D. Pedro I com destino ao Rio de
Janeiro.
O material coletado e os
manuscritos encaminhados para São Petersburgo, com a interrupção prematura da expedição
científica, não puderam ser catalogados e classificados e ficaram durante um
século desaparecidos, atrasando sobremaneira sua utilização pela comunidade
científica.
Assim,
encerrou-se a viagem fluvial que, sem prazo definido para terminar, estava
planejada para alcançar países que fazem fronteira com o Brasil.
Em abril de
1830, Langsdorff, sem se recuperar de seu estado mórbido, regressou à Alemanha,
onde, incapacitado para qualquer atividade científica, conviveu com seus familiares
em Friburgo até falecer em 1852, aos 78 anos de idade.
Os arquivos
da expedição permaneceram esquecidos no Museu Botânico da Academia de Ciências
da Rússia, em São Petersburgo, até 1930 quando foram encontrados casualmente.
O Visconde
de Taunay, ao escrever sobre Langsdorff, sugere que em Cuiabá já estaria
iniciando a perturbação de suas faculdades mentais (TAUNAY, 1977). No entanto, sem
qualquer outra referência comprovando o fato, fica tal impressão desprovida de valor
histórico. Deve-se considerar também que o próprio Visconde, em carta para
Hércules, datada de 06 de julho de 1875, admitiu serem vagas as informações que
tinha a respeito do comportamento de Langsdorff (BOURROUL, 1901, p. 328).
Em geral, os autores que
descrevem a história da expedição, assim como Florence, concluem que a perda da
memória de seu dirigente se deveu à
violência das febres intermitentes. Este estudo se propõe a examinar mais
detalhadamente esta questão.
A DOENÇA TROPICAL
Após dez meses e dez dias de permanência em Cuiabá, os
expedicionários seguiram para a Vila de Diamantino. Nesta vila, Florence
observou que a palidez das pessoas indicava a prejudicial influência da doença febril
entre seus habitantes. Essa palidez, sem dúvida, refletia o estado anêmico em
que eles se encontravam. No dia 06 de março de 1828 o Barão escreveu em seu
diário que vários membros da expedição estavam acometidos pela febre
intermitente.
Depois de cerca de três meses em
Diamantino, os viajantes se dirigiram até o porto do rio Preto e ficaram
acampados numa de suas margens, entre os dias 11 e 31 de março. Sabiam que os
habitantes da região, de maneira empírica, relacionavam a presença da febre com
o ar parado e as margens daquele ponto de embarque. No dia 14 de março Langsdorff
anotou que vários de seus homens estavam febris. A partir de 17 de março, o
Barão, Rubtsov e Florence ficaram hospedados numa casa a seis quilômetros do
porto do rio Preto e na tarde daquele dia Rubtsov teve febre e vômitos e
Florence estava com dor de cabeça. No dia 18 de março Langsdorff estava
inapetente. No dia 19 de março ficaram deitados em suas redes. No dia 20 de
março Langsdorff teve calafrios à tarde e febre durante a noite. No dia 23 de
março escreveu que tivera calafrio e febre e que não comia havia cinco dias.
O relato das fontes pesquisadas
não faz supor que a doença infecciosa do Cônsul pudesse ser diferente daquela
que atingira seus subordinados, e suas características não combinam com a hipótese
de tifo cerebral como, anos mais
tarde, relatou seu filho Georg (BECHER,1990, p. 89). Era uma mesma doença que
os afetava, embora ocorressem diferenças individuais no modo dela se manifestar,
o que estaria de acordo com a reação natural de cada organismo. Os diários
delineiam o quadro clínico quando citam: tipo de ambiente e presença de
mosquitos; diversos nomes para a doença como febres intermitentes, terçãs,
quartãs, sezões, febres malignas; sintomas que precedem o primeiro acesso febril,
como dor de cabeça, sensação de fraqueza, inapetência; sintomas da fase aguda
que surgem quando a doença já está instalada, como o acesso febril, calafrios,
certamente dores nos membros inferiores, fortes cólicas, vômitos, palidez e
períodos de melhoria nos intervalos dos acessos de febre. Citam ainda alguns
sintomas mentais como irritabilidade, desorientação temporal, alteração da
consciência, delírio febril. Estes sinais e sintomas acima referidos são
compatíveis com a manifestação da malária que também tem como sinonímia as
diversas denominações da doença febril citadas nos diários de Florence e de
Langsdorff.
MALÁRIA DOS EXPEDICIONÁRIOS (quadro)
DENOMINAÇÕES
|
Febre intermitente, terça, quartã, sezões, febre maligna.
|
SINTOMAS PRODRÔMICOS
|
Dor de cabeça, fraqueza, inapetência.
|
SINTOMAS FÍSICOS
|
Acesso febril, calafrios, ondas de calor, sudorese,
cólicas, vômitos, palidez, dor nos membros inferiores.
|
SINTOMAS MENTAIS
|
Irritabilidade, desorientação temporal, alteração da
consciência, amnésia.
|
PERÍODOS DE MELHORIA
|
Nos intervalos dos acessos febris.
|
A MALÁRIA
A malária é doença infecciosa
causada por parasita do gênero Plasmodium que é inoculado no ser humano pela
picada da fêmea do mosquito do gênero Anopheles. O Plasmodium foi descoberto em
1880, ou seja, cinquenta e dois anos depois da contaminação dos expedicionários.
Todavia, somente em 1897 ficou conhecido seu modo de transmissão, quando formas
do parasita foram detectadas no interior de mosquito. Na época da expedição não
havia, portanto, o entendimento exato a respeito da origem da doença. Uma das hipóteses
de Langsdorff, por exemplo, era que a febre intermitente se devesse à ingestão
da água parada de lagoa. Depois da invasão do plasmódio o mecanismo de defesa
do organismo é acionado para impedir sua multiplicação nas hemácias. A febre é
um dos sinais desta reação. A doença, dependendo da espécie de plasmódio, é
caracterizada por acessos febris com intervalos de 24, 48 ou 72 horas que se
acompanham de calafrio, calor e sudorese. Período de incubação é o tempo
decorrido desde a inoculação do parasita até o surgimento dos primeiros
sintomas da doença e pode ser considerado, em média, como sendo de 14 dias.
Durante o período de incubação ocorrem os chamados sintomas prodrômicos, isto
é, aqueles que antecedem o primeiro acesso febril, e que são caracterizados
por: mal estar, dores no corpo, dor de cabeça, fadiga, sono agitado,
irritabilidade, incapacidade para o trabalho, inapetência. Período de latência é
aquele de cura aparente e que surge depois do ataque primário que representa o
primeiro curso febril da doença. Durante o período de latência o parasita, em bem
menor concentração, continua presente no organismo havendo o risco de ataque
secundário, ou seja, outro curso febril com manifestações agudas.
Durante o acesso febril, a
malária pode desencadear o chamado delírio onírico acompanhado de confusão
mental. Pode atingir o sistema nervoso central e desencadear psicose infecciosa
que, neste caso, tem o nome de psicose palúdica. Pode atingir o cérebro, direta
ou indiretamente, provocando inflamação que recebe o nome de encefalite.
Em 3 de maio de 1828, quase dois
meses depois que tinham partido da Vila de Diamantino, região endêmica para malária,
Florence escreveu: Em 34 pessoas não
havia senão 15 de saúde, e entre estas só oito tinham escapado até então das
sezões. Isto sugere que oito teriam imunidade natural, sete, que já tinham
tido a malária, estavam com imunidade adquirida e 19 eram suscetíveis, dos
quais os muito suscetíveis seriam Langsdorff e Rubtsov, por exemplo. Florence
também observou: tive mais ou menos
calafrios e febre até Santarém (FLORENCE, 1977, p. 264). Isto indica que em
Santarém ele estaria no período de latência da malária, depois de cerca de três
meses sofrendo o ataque primário da doença.
MALÁRIA e LANGSDORFF
No dia 17 de março de 1828
Langsdorff conseguiu hospedagem em casinha
boa e seca e assim foi possível
sair da mata úmida e abafada. Em 18
de março estava inapetente. Em 19 de março permaneceu deitado na rede. No dia
20 teve calafrios de tarde e febre alta durante a noite. Na manhã de 21 se
sentia melhor e com disposição para percorrer os seis quilômetros até o porto
onde teve forte acesso febril depois do meio dia. Considerando 14 dias como
período de incubação, ele teria sido infectado no dia 06 de março quando ainda se
encontrava em Diamantino. Pelo que descreveu, apresentou os seguintes sintomas
físicos: febre alta, calafrio, calor seco, sudorese, dificuldade para
deambular, inapetência, respiração difícil, sensação de fraqueza, constipação
intestinal, febre terçã, dor de cabeça, distensão abdominal, náuseas. E os
seguintes sintomas mentais: delírio onírico, confusão mental, desorientação
temporal, além de alteração da consciência. Entre 11 e 14 de abril de 1828,
sobre o dia seguinte ao do acesso febril, escreveu: as ideias se confundem, vêm outras à mente, são mal compreendidas, e já
não se consegue distinguir entre o que é pensamento dos outros e o que é fruto
da própria experiência. Também referiu que permaneceu em torpor entre 24 de
abril e 13 de maio de 1828, tendo sonhos
fantásticos (delírio onírico) e escreveu: não tomei conhecimento do que se passou nesses dias (amnésia
lacunar). Não sei como aconteceu, mas perdemos
um batelão, e a segunda canoa ficou bastante avariada. Todavia, segundo relato
de Florence, em 07 de maio de 1828, Langsdorff ficou furioso com a camaradagem
e, sobretudo com o guia, por ocasião do acidente com a canoa (FLORENCE, 1977,
p. 265).
DESCRIÇÕES DO TRANSTORNO MENTAL
A
respeito da situação de Langsdorff, logo após 20 de maio de 1828, Florence
observou: perda da memória das coisas
recentes e completo transtorno das ideias. Em outubro de 1828, Rubtsov relatou
ao Colégio de Assuntos Exteriores: Grigory
Ivanovitch piorava a cada dia, e eu não tinha mesmo esperança de chegar com ele
à cidade de Santarém. Ele sentia o mesmo, tendo me chamado e declarado que sua
vida estaria chegando ao fim, e recomendando-me ocupar o seu posto e enviar todo
material sobre história natural a são Petersburgo. Alguns dias depois, ele já
havia começado a perder a razão (KOMISSAROV, 1981, p. 44). Chegaram a Santarém no dia primeiro de
julho de 1828 e sobre a estadia naquela cidade Rubtsov escreveu: Ele está completamente atrapalhado do juízo.
Não sabe nem mesmo onde se encontra, nem o que come (KOMISSAROV, 1996, p.
111). No início de 1829, a bordo do
navio, na viagem de volta ao Rio de Janeiro, segundo Rubtsov: “o ar marítimo foi benéfico a Grigory Ivanovitch e tudo o que lhe aconteceu
anteriormente a esta viagem, ele descrevia. Mas no que se refere a
acontecimentos posteriores a 3 de setembro de 1825, até o presente, ele não se
lembra. Várias vezes repetia que não se lembrava de nada...” ... “Não pode ser
(apesar do avançado dos anos) que esteja em seu juízo perfeito” (KOMISSAROV,
1981, p. 46). Cabe salientar que naquela ocasião, como
ocorrera com Florence em Santarém, os acessos maláricos de Langsdorff já
deveriam ter cedido ou, pelo menos, amenizado. Em 27 de abril de 1830 em carta para Florence, Riedel escreveu que
Langsdorff estava em completa
imbecilidade (BOURROUL, 1901, p. 330). Em novembro de 1829 o embaixador
russo Franz Borel escreveu para Karl Nesserolde, ministro das relações
exteriores da Rússia: ... Privado de
todas as suas capacidades mentais, ele age como se fosse uma criança, não pode
ocupar-se de absolutamente nada, e tampouco consegue conversar (KOMISSAROV,
2010, p. 27). Pedro Alexandre
Kielchen, vice cônsul da Rússia, escreveu para Florence, em 25 de setembro de
1830: o Sr. Cônsul geral Von Langsdorff
embarcou para a Europa com toda sua família em abril último... a sua saúde
continuava sempre no triste estado como quando estáveis em sua companhia (BOURROUL,
1901, p. 331). Em abril de 1831, Dr. Bozen, médico de Freiburg, atestou que
Langsdorff, em consequência de febre
tropical, havia sofrido perda da memória, não se recordando dos acontecimentos
dos últimos anos, mas com ótimas lembranças de suas viagens anteriores à Expedição
brasileira (KOMISSAROV,
1992, p. 129). Na Alemanha, seu filho Georg relatou: Na última viagem de meu pai, com o objetivo
de conhecer a origem do rio Amazonas, ele ficou enfermo e perdeu a memória... ...conseguia
se lembrar exatamente do passado, mas não do presente. Assim, ao acabar de ler
um jornal, as primeiras linhas eram para ele uma novidade (BECHER,
1990, p.89).
MEMÓRIA E LANGSDORFF
Durante os acessos febris, Langsdorff apresentava delírio
onírico que corresponde a estado confusional agudo, em geral, com intensa
produção de ilusões e alucinações visuais. Nesta condição, seu contato com o
mundo externo ficava prejudicado e tinha a sensação de estar participando
diretamente de cenas agitadas, como se sonhasse, sem fazer distinção entre o
que era próprio de sua imaginação e o que era real. Ele mesmo fez referência a
esta situação quando comentou em seu diário que estava tendo sonhos fantásticos. Neste estado,
permanecia durante várias horas e, posteriormente, ao se recuperar, não se
recordava do que havia acontecido. Este tipo de esquecimento tem o nome de amnésia
lacunar e se restringe aos eventos relacionados com o período de
confusão mental. E, pelo que ele referiu em seu diário, também não se recordava
do acidente das canoas e, consequentemente, de ter ficado furioso com o pessoal
como foi citado por Florence.
A partir de 20 de maio de 1828, aos
54 anos de idade, seu quadro mórbido se agravou e, além do transtorno de
ideias, passou a apresentar perda da memória para fatos recentes, ou seja, a
assim denominada amnésia de fixação. Isto significa que, a partir daquele
momento, havia perdido a capacidade de reter as impressões do que ocorria, ou
do que viesse a presenciar. Anos mais tarde, de acordo com relato de seu filho
Georg, não se recordava de que havia lido o jornal, logo após a sua leitura.
A partir de março de 1829, no
navio que trazia os expedicionários de volta ao Rio de Janeiro, Langsdorff denotou
melhora do seu estado mental ao discorrer sobre eventos do passado. Isto indica
que a memória de evocação estava preservada. No entanto, na mesma ocasião,
ficou evidente seu completo esquecimento da expedição fluvial, a partir do
embarque dos viajantes na baía da Guanabara com destino à cidade de Santos, em 03
de setembro de 1825. Este tipo de perda de memória tem o nome de amnésia
psicogênica que, determinada por uma repressão das recordações, está
relacionada com o mecanismo psicológico de defesa contra experiências que se
mostraram insuportáveis pelo grau de aflição que causavam. Desta forma, a
realidade envolvendo tais eventos não mais exerceria atuação desagradável,
pois, mentalmente, era como se não tivesse ocorrido (KOLB,1976, p.118).
Contribuíram para que a amnésia
psicogênica se manifestasse vários agentes estressores relacionados, direta ou
indiretamente, com a expedição fluvial. A somatória de seus efeitos
prejudiciais tornou a realidade difícil de ser suportada fazendo com que
Langsdorff atingisse o esgotamento, ou fase de exaustão do estresse,
principalmente, a partir da estadia na Vila de Diamantino. Ele estava ciente da
gravidade de seu mal, pois em 22 de abril de 1828 pediu autorização a
Nesserolde para que Riedel e Florence continuassem a viagem seguindo o roteiro
planejado. E, em 18 de maio, logo depois de anotar em seu diário que fora
acometido de febre intermitente, maligna e irregular, solicitou férias para
descansar na Europa (KOMISSAROV, 1992, p. 127).
CONDIÇÃO
|
DATA APROXIMADA
|
DESCRIÇÃO
|
AMNÉSIA LACUNAR
|
Fim de março e em
abril e maio de 1828.
|
Não se recorda de eventos
relacionados com os períodos de confusão mental.
|
AMNÉSIA DE FIXAÇÃO
|
A partir de 20 de
maio de 1828
|
Perda da memória
para fatos recentes, a partir do início do transtorno mental.
|
AMNÉSIA PSICOGÊNICA
|
Conforme observou
Rubtsov, a bordo do navio na viagem de volta ao Rio de Janeiro, a partir de
26 de março de 1829.
|
Não se recorda dos
eventos desde 03 de setembro de 1825 quando os viajantes partiram do Rio de
Janeiro para organizar a expedição fluvial.
|
MEMÓRIA DE
EVOCAÇÃO CONSERVADA
|
Conforme observou
Rubtsov, a bordo do navio na viagem de volta ao Rio de Janeiro, a partir de
26 de março de1829.
|
Recorda-se de
fatos do passado, anteriores a 03 de setembro de 1825.
|
Depois de sua chegada ao Brasil e
até 1826, Langsdorff havia enfrentado situações emocionalmente difíceis, como:
separação conjugal, acanhado resultado de seus empreendimentos agrícolas, perda
da fazenda Mandioca e fracasso da colonização alemã (KOMISSAROV, 1996, p. 79) e
morte de seu escravo Alexandre (KOMISSAROV, 1996, p. 62) que era quase indispensável para a viagem
científica. As circunstâncias e o tipo de personalidade do Barão, todavia,
permitiram que, inicialmente, superasse a atuação prejudicial de tais
percalços. Apesar da viagem até Cuiabá ter sido perigosa, dura e difícil, Langsdorff, durante sua estadia naquela
cidade, escreveu carta a seu pai se dizendo com boa saúde e denotando
disposição em prosseguir com seu objetivo (BECHER, 1990, p. 79). No entanto, em
Diamantino ele passou a dar sinais de fadiga mental e foi também naquela Vila
que recebeu a carta de Riedel comunicando a morte trágica de Adriano Taunay. Seu
desgaste ainda continuou quando, contra sua vontade, juntamente com seus
subordinados, aguardou, por três semanas, pelo embarque no porto do rio Preto.
Mostrou aí sua irritação com a administração da Vila de Diamantino que impedia
o avanço da expedição (KOMISSAROV, 1996, p. 100). Nesse ínterim, a malária, até
então incubada, passou a se revelar e os diversos fatores externos agindo como
estressores e com tendência a comprometer o sistema imunológico contribuíram
para que sua enfermidade se agravasse.
O delírio onírico, durante o
acesso malárico, pode ocorrer em determinados indivíduos, desde que haja
predisposição genética para seu aparecimento. Os sintomas mentais de Langsdorff
iniciaram com os acessos febris quando, em delírio onírico, entrava em confusão
mental com produção de distúrbio senso perceptivo e desorientação no tempo. No
dia seguinte ao do acesso febril, conforme ele mesmo referiu em seu diário, as
ideias se confundiam e vinham outras à mente que eram mal compreendidas e não
conseguia fazer distinção entre o que era pensamento propriamente seu e o que
era de outrem. Esta descrição, indicando que algum sintoma mental persistia
independente do acesso febril, sugere a presença de distúrbio senso perceptivo
com característica de Automatismo Mental de Clérambault.
Em 07 de maio de 1828, Florence observou
que Langsdorff ficou furioso (1), ou furiosíssimo (Florence, 1977b), quando, acidentalmente,
uma das canoas foi danificada pelas pedras. Como o Barão, pelo que registrou em
seu diário, não se recordava dessa cena é possível inferir que estivesse em
estado crepuscular (também denominado estreitamento da consciência) que,
algumas vezes, acompanha a excitação violenta que pode surgir como um dos
transtornos psíquicos da malária (PAIM, 1980, p.103). Durante o estado
crepuscular o indivíduo pode ficar agressivo e mais tarde não se lembrar dos
atos que praticou.
Não muito tempo depois de ser contaminado
pela malária, segundo descrição daqueles que o conheceram pessoalmente e que o
presenciaram enfermo,Langsdorff já apresentava sinais sugestivos de quadro
demencial. Em Santarém ele estava completamente
atrapalhado do juízo sem saber onde se encontrava ou o que comia, segundo
Rubtsov. O declínio das funções da inteligência, a incapacidade para o trabalho
e para manter diálogo são sinais que se destacam na descrição feita por Franz
Borel. Ao escrever que ele se encontrava em estado de completa imbecilidade, era uma maneira de Riedel avaliar o grave
rebaixamento do nível intelectual que ele apresentava.
Uma provável hipótese para esta situação
é a demência precoce descrita por Marchand em 1935 (ALMEIDA PRADO, 1943, p.
405) acarretando um comprometimento cognitivo irreversível. A encefalite psicótica
de Marchand pode surgir de forma secundária a infecções, que neste caso é a
malária, e evoluir, desde o início, sob a forma crônica. Para diferenciar esta síndrome da
demência precoce constitucional, na qual não são observadas lesões
inflamatórias, Marchand a denominou de demência
precoce encefalítica.
Além da fase aguda da malária,
como fator desencadeante, haveria uma condição favorável ao desenvolvimento do
transtorno mental, dada pelos traços herdados e adquiridos. Sem uma tendência
latente para produzir este tipo de demência, a reação de Langsdorff à maleita,
provavelmente, não seria muito diferente daquela apresentada pelos companheiros
de viagem que também foram infectados por ela.
Nota:
1- Voyage
fluvial du Tiete à l Amazone , par les Provinces Brésiliennes de St.Paul, Mato
Grosso et Gram - Pará. Página 390, linha 23: M. De Langsdorff se mit dans un fort colère contre nos gens, et surtout
contre le guide, qui est cause de bien des sinistres dans ce voyage.
BIBLIOGRAFIA
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6. BECHER, Hans. O Barão Georg Heinrich von Langsdorff - pesquisas de um cientista alemão no século XIX. Trad.: Mário Nunes Jr. São Paulo: Edições Diá; Brasília: Editora UNB, 1990.
7. BOURROUL, Estevam. Hércules Florence. São Paulo, Tip. Andrade Mello, 1901.
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11. FLORENCE, Francisco. Uma interpretação para a amnésia de Langsdorff. IV Simpósio Internacional sobre Acervo de Expedição de G. H. von Langsdorff, Petrópolis, R. J., junho de 1992.
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