terça-feira, 24 de junho de 2008

A INFÂNCIA EM MÔNACO

Em seu diário manuscrito, Hércules Florence não faz nenhuma menção aos seus estudos escolares. Hércules diz sempre ter sido autodidata, tendo feito seu aprendizado sozinho e através de leituras. Ele as conta em detalhes e cita todos os livros que alimentaram sua avidez por conhecimentos.
Muito jovem, sua grande admiração por Napoleão o influenciou muito fortemente. Durante sua primeira infância viveu a epopéia da Grande Armada e os ideais da Revolução. Hércules completou 11 anos por ocasião da batalha de Warteloo.
Louis XVIII restaurou a monarquia dos Bourbons.
Em Mônaco Honoré IV retomou a posse do trono dos Grimaldi.
É então nos livros que Hércules embarca para continentes desconhecidos, navegando por páginas que lia com o coração acelerado. A primeira leitura que ele menciona é Robinson Crusoé, que foi de fundamental importância em sua vida.
Órfão de glórias e conquistas, Hercules criança devora “As aventuras estranhas e surpreendentes de Robinson Crusoé”.
Ele se entusiasma: “Eu li Robinson e apaixonei-me por viagens e aventuras marítimas”. Esta louca tendência a “percorrer o mundo” de Robinson tomou conta dele.
Ele escreveu em seu caderno onde anotava suas idéias: “Partirei um dia próximo para alguma ilha deserta onde a natureza será a minha única mestra, aprenderei sua linguagem, a farei cantar, anunciarei sua beleza ao resto do universo”. Fica-se estupefato diante desta visão tão clara do futuro de sua existência. Ele perseguirá este destino de naturalista, dez anos mais tarde no Brasil, tornando-se o segundo desenhista da Expedição Langsdorff, descrevendo com seu pincel a fauna, a flora, as paisagens percorridas e as tribos de índios da Floresta Amazônica.
Hercules Florence evoca, aliás, com paixão, a descoberta de mundos longínquos que o cativaram em “A História filosófica e política dos estabelecimentos e do comércio dos Europeus nas duas Índias” de Abade Raynal, uma obra que ele qualifica de “brilhante”. Um livro erudito e polêmico, publicado às vésperas da Revolução, onde o filosofo ataca todos os tipos de opressão, os Reis e a Igreja, e é um dos primeiros a denunciar a escravatura.
Hercules completa seus conhecimentos de geografia num grande Atlas pertencente à sua família: “não havia lugar do globo onde eu não pretendesse ir um dia. O Mediterrâneo me parecia muito pequeno e eu só pensava percorrê-lo como se percorre um lago de seu país antes de abandona´-lo”.
Suas outras leituras foram cientificas. Ele cita a A enciclopédia de Diderot, o tratado das matemáticas de bezout, a Física experimental de nollet.
Hércules o sonhador era pragmático e tinha gosto pela ciência. Pois sem bagagem, a aventura não se improvisa ela se transforma em derrota. É um dos traços marcantes do caráter de Hércules Florence: os desejos se prendem à reflexão, o estudo semeia o entusiasmo. Ele escreve: “Tinha compreendido que para ser marinheiro deveria estudar matemática. Tinha poucos livros a meu alcance e comecei a estudar sem mestre”.
No calor de seus 14 anos, sonhava ser marinheiro, a melhor maneira de fugir e percorrer o mundo. Sua mãe, esperando que com o tempo ele se acalmaria, o colocou em um escritório de Engenharia. Hércules executava trabalhos de escrita e desenho: planos, mapas, perspectivas, copias de relatórios a serviço dos engenheiros encarregados da abertura de estradas e da reconstrução do Palácio. Seus sonhos de viagens adormeceram por um tempo.
Lançou-se então ao estudo das ciências exatas com toda a energia de seu despeito. Em seus instantes de liberdade, desenhava e preenchia seus cadernos de demonstrações e de sábios teoremas. O inventor genial que seria Hércules Florence despontava na época. Traçou plano para uma vasta rede de canais de navegação irrigando a França. Iniciou o estudo de uma nora (aparelho para tirar água de poços) com movimento perpétuo, uma máquina complexa onde a água circularia sob a força da gravidade. Seu projeto milimetrado e colorido está inserido em seu diário.
Um dia seu irmão Emmanuel, que assim como Hércules sonhava com oceanos e aventuras, embarcou para o Egito. O pachá Méhémet Ali, amigo da França, em guerra contra os Otomanos, havia atraído inúmeros generais e engenheiros franceses, para lhe construir uma frota e um exercito poderoso contra o inimigo. Emmanuel desapareceu no Egito, sem deixar vestígios. Nenhuma indicação sobre as circunstancias de sua possível morte aparece, nem no diário de Hércules, nem nos arquivos do Consulado de Alexandria estudados por mim.
Fortuné, o mais velho dos filhos Florence, se engajou no corpo de carabineiros. Em 1822 uma ordem do Príncipe Honoré V o nomeou sub tenente, premissa de uma brilhante carreira que o levaria ao posto de Capitão de Engenharia e Cônsul da cidade de Mônaco no fim de sua vida. Sua esposa lhe deu 4 filhos: Clotilde, Théodorine, Philibert e Adelaide.
Mas o ramo monegasco de Fortuné desapareceria em 1918 com seu filho Philibert Florence, pintor apreciado, mas que não deixou descendência. Uma ruela de Mônaco tem seu nome. Suas irmãs Clotilde e Adelaide morreram solteiras, muito idosas, com 92 e 85 anos. Quanto a Théodorine, casou-se com seu primo - irmão Francisco, um dos filhos de Hércules e foi com ele ao Brasil.
Uma parte dos Florence brasileiros é então, de uma certa maneira, duplamente Florence, por Fortuné e por Hércules. Mas não resta nenhum Florence no Principado, mesmo porque Célestine, a irmã caçula de Hércules e Fortuné morreu em Mônaco, solteira. Em compensação Hércules, o exilado, deixou numerosa descendência no Brasil.
Pode-se perceber que os 4 filhos de Arnaud Florence, o soldado do ano II, e de Augustine Vignalis, a jovem monegasca, se dividem em dois pares de caracteres muito diferentes: os sedentários que ficam em Mônaco: Fortuné e Célestine, e os aventureiros: Emmanuel que partiu para o Egito e Hércules que veio ao Brasil.
(Trecho de artigo escrito por William Luret na revista Annales Monegasques - 2006)

SEU PAI ARNAUD FLORENCE

Se as influências artísticas que formaram seu caráter procederam de sua linhagem materna e monegasca, Hércules Florence tem de seu pai, sem dúvida alguma, o anseio por viagens e conhecimentos que o levaria para distante de sua terra natal.
Arnaud Florence era filho de Roch Florence, mestre de cirurgia, figura emérita de Toulouse. A febre de aventuras atingiu muito cedo este filho fantasioso e temerário.
Sur un coup de tête, dans les turbulences de sa jeunesse (sobre um golpe de cabeça, nas turbulências da sua juventude) engajou-se no Regimento Real Comtois, designado para o serviço dos portos e colônias, promessa de grandes viagens pelos oceanos. Durante sete anos ele serviu em La Rochelle, Saint Martin de Ré et Rochefort, portos de embarque para o Mar das Índias e Isle de France (ilhas Mauricio), quando foi nomeado segundo sargento cirurgião a bordo de várias embarcações. Tendo o Royal Comtois sido designado para Lille, Arnaud Florence deixou o regimento em 1775.
De volta a Toulouse, aprendeu os rudimentos da medicina com seu pai.
Quando a revolução estourou, abraçou a causa republicana e em fevereiro de 1792 foi eleito cirurgião-mór no Estado Maior do 3º Batalhão de Voluntários de Haute Garonne. A tropa foi guerrear na Savóia e no outono chegou ao Rio Var, fronteira do Condado de Nice. O general Anselme ocupou a cidade sem disparar nenhum tiro e despachou o 3º batalhão para Mônaco, para proclamar a república.
Em Mônaco, requisitou-se, para os soldados, a maior parte do Palácio do Príncipe. A ala dos grandes apartamentos foi designada para ser Hospital militar e a capela transformada em armazém de víveres e depósito de armas. Na capela da Misericórdia instalou-se a “sociedade dos Amigos da Liberdade e da Igualdade”. Esta sociedade apressou-se em votar, logo nos primeiros dias de 1793, a decadência dos Grimaldi e a união de Mônaco à República, rebatizada Forte Hércules. Em Paris, Robespierre triunfava no Comitê de Saúde Pública, enquanto que os Sans culotte da sessão do Bonnet rouge prendiam o Príncipe Honoré III em sua residência de Matignon.
Quando na primavera de 1776, o exército da Itália levado pelo general Bonaparte retomou a ofensiva no Rio Pó, Arnaud Florence foi chamado a Nice e nomeado Oficial de Saúde de 2ª classe no Hospital nº 3 que era o Palácio do Governador. Ele instalou sua família numa ruela sombria e estreita, a Rue de la Réunion, 4ª sessão, assim rebatizada a fim de comemorar a união de Nice à República (atualmente Rue du Gesu).
Nasceu o terceiro filho deles, Fortuné. Os Florence mudaram-se para a Place de la Liberté (atualmente Place du Palais de Justice). Alguns meses mais tarde, no outono de 1799, uma terrível epidemia de peste dizimou a cidade. Augustine perdeu seu filho Jean Baptiste e seu irmão, o pintor Jean Baptiste Vignalis.
Terminada a campanha da Itália, os oficiais de saúde foram reformados e Arnaud encontrou-se sem recursos e os seus na miséria. Foi então que o prefeito Florens lhe confiou um empreendimento titânico, mas bem-vindo: registrar a situação dos Alpes Marítimos, nomeando-o para isso “Comissário encarregado da estatística”. Após 16 meses de trabalho, ele entregou uma enciclopédia detalhada do departamento (região dos Alpes Marítimos).
Seguiram-se dias difíceis e incertos. Arnaud só receberia parcos emolumentos como professor de desenho na Escola Central. Nasceu outro menino em 1804, chamado Hércules. Dois meses mais tarde, Napoleão Bonaparte era coroado Imperador.
Célestine, sua última filha nasceu no verão seguinte.
Em seguida, partiram para Vintimille (Ventimilha). Arnaud tinha sido nomeado fiscal de impostos, pois Napoleão havia reunido o distrito de San Remo ao departamento dos Alpes Marítimos. Arnaud foi rapidamente despedido e voltou a Mônaco onde morreu em 14 de outubro de 1807, na residência da família na rua do Hospital. Seu filho Hércules tinha três anos e Fortuné oito. Augustine, sua esposa, viveu mais cinqüenta anos e morreu com 89 anos.
(Trecho de artigo escrito por William Luret na revista Annales Monegasques - 2006)

SUA MÃE AUGUSTINE

Augustine Vignalis era a filha de Claude e Aimée Vignalis. Sua mãe era uma Gastaldi.
Augustine teve cinco irmãos. O mais velho, Jean Baptiste nasceu em 1762.
Augustine nasceu em Mônaco no dia 06 de janeiro de 1768. Casou-se em 2 de março de 1793 em Mônaco com Arnaud Florence, aos vinte e cinco anos de idade.
Os arquivos do cartório do ano de 1793 revelam um aumento na quantidade de casamentos entre moças monegascas e soldados e sans - culottes que chegaram ao Principado na primavera do Ano II da República. Arnaud Florence 44 anos, cirurgião - mor do 3ºbatalhão dos voluntários de Haute-Garonne, originário de Toulouse, escolheu a cidadã Agostina Vignalis.
De sua família materna de Mônaco Hércules recebeu a influência artística que impregnou profundamente sua juventude. Seu tio Jean-Baptiste o irmão mais velho de Augustine, pintor de grande futuro, recebeu o Prêmio de Roma em 1781, aos dezenove anos, assim como seu pai Claude Vignalis que havia recebido o mesmo prêmio cinqüenta anos antes. O Príncipe Honoré III, benfeitor das artes, o havia tomado sob sua proteção e ofereceu-se a custear seus estudos e fez vivas recomendações à Corte. Jean Baptiste viveu dez anos em Roma.
Arnaud pai de Hércules também havia freqüentado, em sua juventude, durante três anos a Academia Real de Toulouse, recebendo várias menções e um prêmio de composição em pintura.
No entanto, de acordo com o próprio Hércules, sua iniciação na arte pictórica foi solitária. Ele escreveu em seu diário: “atraído por tudo o que estava ao meu alcance para aprender, não podia deixar de me dedicar ao desenho. Eu o aprendi sem nenhum mestre, somente com os modelos que tinha diante de meus olhos”.
Augustine Vignalis e Arnaud Florence tiveram seis filhos.
A primeira filha Claudine-Herculine nasceu em Mônaco em fevereiro de 1794 e morreu com dois anos. Os outros cinco nasceram em Nice. Jean Baptiste, nasceu em 1796 e morreu com três anos durante a epidemia de peste de 1799. Fortuné nasceu em 1799, Emmanuel nasceu em 1802, Hércules nasceu em 1804 e Célestine nasceu em 1805 no fim da primavera.
(Trecho de artigo escrito por William Luret na revista Annales Monegasques - 2006) https://ihf19.org.br/docs/pt-br/publico/Annales%20Monegasques%20artigo%20completo.pdf