sábado, 5 de abril de 2008

PORQUE LANGSDORFF PERDEU A MEMÓRIA

Introdução
O barão von Langsdorff, quando cônsul da Rússia no Brasil, organizou e chefiou uma expedição fluvial ao interior do país, partindo, em junho de 1826, de Porto Feliz.
A expedição, financiada pelo governo russo e sem ter um prazo exato para terminar, estava também planejada para alcançar países vizinhos. No entanto, a doença mental que acometeu Langsdorff, e da qual não se recuperaria durante o resto de sua vida, foi responsável pela interrupção da expedição e pelo esquecimento e abandono do material coletado e dos manuscritos que permaneceram desaparecidos durante um século.Os expedicionários, depois de atingirem Cuiabá onde permaneceram mais de ano, chegaram à Vila de Diamantino, onde a malária se refletia nas pálidas faces de seus moradores. Em seguida, no dia nove de março de 1828, seguiram mais ao norte, até o porto do rio Preto onde permaneceram vinte e dois dias. Eles sabiam que corriam risco de adoecer durante estadia prolongada naquele local insalubre. O ambiente era propício para desencadear doença febril que, no caso deles, seria hoje diagnosticada como malária que, em vinte e dois dias, teve período suficiente para sua incubação seguida dos principais sinais e sintomas que a caracterizam. Langsdorff estava entre aqueles atingidos por ela.

Malária
O parasita responsável pela malária (plasmodium sp) foi descoberto em 1881 quando se comprovou que ele é inoculado no ser humano através da picada de determinado gênero de mosquito (Anophles). Na época da expedição não havia, portanto, entendimento exato sobre a origem do quadro clínico da doença. Uma doença febril, como a malária, tem duas possibilidades de ocasionar perturbações psíquicas: ou o processo infeccioso exerce ação indireta sobre o cérebro, ou o atinge diretamente.Na literatura médica brasileira há várias referências sobre casos de doença mental em pacientes contaminados pela malária. Todavia, o uso de medicamentos modernos tornou rara a manifestação desse tipo de psicose.Além de ser capaz de produzir o delirium febril, o parasita da malária pode atingir o cérebro e seus vasos sanguíneos, provocando inflamação. Essa inflamação cerebral determina a presença de distúrbios psíquicos que, na fase aguda, são evidenciados pela confusão mental. Tal condição pode evoluir com lesões definitivas, resultando num quadro psicótico permanente. Além da infecção febril, como fator desencadeante da perturbação mental há uma predisposição individual para que a enfermidade se instale.

Amnésia
Após ter sido infectado pela malária em março de 1828, Langsdorff passou a apresentar sintomas mentais que acompanhavam os acessos febris indicando a presença de alteração da consciência. Essa manifestação conhecida como delirium corresponde a um estado de confusão mental. Nesse estado, Langsdorff permaneceu durante horas, ou dias seguidos e ao se recuperar, posteriormente, pouco se recordava do que lhe havia acontecido e do que sucedera ao seu redor. Padecia, na ocasião, de uma amnésia lacunar, isto é, amnésia que fica restrita aos eventos relacionados com o período de confusão mental e que se denomina pós - confusional. No início, após cada acesso febril, a remissão do "delirium" era, certamente, completa. No entanto, a freqüência com que ocorriam as crises, fez com que os sintomas psíquicos persistissem, mesmo durante os intervalos em que a febre cedia. Essa condição revelou a gravidade do estado mental de Langsdorff que começava, assim, a perder a razão. O agravamento do seu estado de saúde foi observado a partir da segunda quinzena de maio de 1828. Hércules Florence, anotou em seu diário que Langsdorff, na ocasião, exibia perda da memória para acontecimentos recentes além do completo transtorno das idéias.A doença mental, portanto, estava instalada, trazendo, como uma de suas conseqüências, a amnésia de fixação. Isso significa que, a partir daquele momento, Langsdorff havia perdido a capacidade para reter as impressões sobre os fatos que viesse a presenciar.Seu filho Georg, anos mais tarde, observou que o pai, imediatamente após ler o jornal, não conservava lembrança do conteúdo inicial da leitura; isso comprova que um dos sinais de sua doença era a amnésia de fixação.
No navio que o trazia de volta para o Rio de Janeiro, no início de 1829, Langsdorff apresentou uma aparente melhora de seu estado mental e se recordou, detalhadamente, de muitos eventos de seu passado. Naquela ocasião, no entanto, demonstrou ser portador de uma amnésia restrita a acontecimentos significativos, pois não se recordava de nenhum fato relacionado com o período compreendido entre a saída da expedição do Rio de Janeiro em 03 de setembro de 1825 e seu término em Belém.Esse tipo de amnésia, que tinha as características de um processo seletivo, se sobrepôs ao quadro psicótico. Representava um mecanismo psicológico de defesa de Langsdorff contra experiências que se lhe mostraram insuportáveis pelo grau de sofrimento e de ansiedade que foram capazes de produzir. Era uma maneira dele se sentir, mentalmente, aliviado ao se esquecer daquela “penosíssima, atribulada e infeliz peregrinação” (HF).

Conclusão
Depois de sua chegada ao Rio de Janeiro, em março de 1829, o cônsul se encontrou "privado de toda sua capacidade mental... inabilitado para qualquer coisa ou conversar sobre qualquer assunto".
Langsdorff retornou à Europa em maio de 1830 e, sem obter recuperação de sua saúde mental, deixou a vida científica para conviver com seus familiares.
Durante as manhãs, ao se sentar à mesa de seu escritório se empenhava para vencer as dificuldades advindas da doença. Quando mantinha eventuais diálogos com estudiosos, por vezes, deixava transparecer algum sinal de como fora nos anos de lucidez.
Enfim, seu quadro mórbido evoluiu para um enfraquecimento psíquico irreversível causando profunda modificação na dinâmica de sua personalidade e se refletindo na dificuldade para raciocinar, elaborar ou compreender os fatos.
Faleceu aos setenta e oito anos de idade, depois de conviver, cerca de vinte e quatro anos, com a enfermidade.

(Este texto foi elaborado a partir das apresentações feitas durante os III e IV Simpósios Internacionais sobre o acervo da Expedição Langsdorff por Francisco A. Florence Neto).

Nenhum comentário: