domingo, 20 de março de 2011

Triste coisa é nascer...

No diário de viagem em junho de 1827.

Nada apreciado pelos habitantes do Quilombo é Domingos José de Azevedo, o senhor da lavadeira que encontrou o diamante. O filho dele provocou-lhe a ira, por ter sido, na província, um dos partidários da Independência do Brasil. Recebeu-nos em sua fazenda que procuramos para aí passar alguns dias. Mas recebeu-nos com regateada satisfação, se a não podemos levar à conta de frieza. Está com sessenta anos, é de estatura média, grisalhos lhe são os cabelos e negras bastas e unidas as sobrancelhas, cujos compridos pelos lhe caem sobre os olhos e acabam na fronte, em pontas, como se fossem bigodes, o que lhe dá um olhar quase que feroz. Sua barba, tão basta quanto os supercílios, é também grisalha. Nenhum de seus filhos mora com ele que é viúvo. Para não dizer que está inteiramente só, tem consigo os escravos, aproximadamente trinta que cuidam de sua cultura de cana. Enquanto ceávamos, foi pouco a pouco se fazendo menos rebarbativo. Pôs-nos então a par da labuta que lhe custou a formação do sítio e da fortuna. Não poupou recriminações ao citado filho e esclareceu-nos a respeito de como dirigia a casa. Acabada a refeição, todos os escravos se reúnem no alpendre, ou sala de entrada, e iniciam-se as rezas, a que assistimos. Canta-se a primeira oração, que assim se abre: “triste coisa é nascer...” Estranha maneira de louvar a Deus; parece até composição de nosso hospedeiro.
Mal findaram as preces, mandou ele pôr as camas no alpendre e recolheu-se.
No almoço do dia seguinte, assegurou-nos que contava os grãos de café, porque, do contrário, os escravos lhos furtariam. Refere-se por oportuno, à mulher e, já levantados da mesa, conduz-nos a seus aposentos, dois quartinhos, aliás.
No dos fundos, ergue-se um alçapão e mostra-nos o cômodo de baixo, escuro, úmido e sem saída, só tendo gradeada janela, que dá para o engenho, ou moinho de açúcar. , diz-nos ele, “é que eu guardava minha mulher, quando me ausentava. Ela descia por uma escada que em seguida eu retirava e seus alimentos passavam a entrar pela janela do engenho”.
Abstenho-me de emitir opinião sobre tal caráter. O leitor, sem dúvida, já formulou seu juízo.

Imaginávamos que pudéssemos visitar o engenho, como ocorria em todas as fazendas. Enganamo-nos, entretanto. O homem tinha ciúmes de suas mulatas e, em vista disso, permanecemos no alpendre e no terreiro, este defronte da casa.

"Viagem Fluvial" em tradução de Francisco Álvares Machado e Vasconcellos Florence.

Um comentário:

Acrilato disse...

Manter trinta escravos sózinho não devia ser fácil não. Apesar de não compartilhar o comportamento, entendo e ainda fico fascinado com a cultura da época. Hercule Florence foi um privilegiado por ter vivenciado tudo isso.